Notícia  /  06.02.2018

Schuss, 1968. Meio século de mascotes olímpicas

A escassos três dias da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pyeongchang, assinala-se a 6 de Fevereiro o 50.º aniversário da abertura dos Jogos Olímpicos de Grenoble de 1968. Entre vários contributos relevantes para a história olímpica moderna, esses X Jogos Olímpicos de Inverno foram pioneiros num domínio hoje vulgar em qualquer grande celebração desportiva internacional: a apresentação de uma mascote representativa do evento.

É certo não ter-se tratado de uma mascote oficial, por não ter sido reconhecida nem pelo comité organizador dos Jogos de Grenoble nem pelo Comité Olímpico Internacional. De resto, não existe mesmo qualquer menção ao «Schuss» (assim se chamava a mascote) no relatório oficial desses Jogos. Mas, nos nossos dias, nenhum estudioso do olimpismo hesita em reconhecer o carácter inovador e precursor dessa figura estilizada de esquiador na linhagem de mascotes olímpicas que se lhe seguiu.

A figura tinha sido criada em Janeiro de 1967 pela desenhadora parisiense Aline Lafargue, numa noite passada em claro à frente do estirador, depois de ter recebido de uma agência publicitária (Publinel) a encomenda urgente de desenho de uma personagem para representar os Jogos de Grenoble do ano seguinte. Prazo: até à manhã seguinte.

Profissional com mais de dez anos de experiência, sendo, por exemplo, co-autora da série de animação «Carrocel Mágico», emitida em Portugal pela RTP nas décadas de 60 e 70, Aline não teve grande dificuldade em resolver o problema, tendo imaginado uma figura estilizada do perfil de um esquiador em posição de descida. A cabeça, sobredimensionada, destacava-se em forma de balão vermelho à frente e branco atrás, encimado pelos anéis olímpicos pintados a branco. O resto do corpo apresentava-se de azul e branco, completando a paleta tricolor da bandeira francesa. Ou seja, «Schuss» revelava já uma característica comum a praticamente todas as mascotes olímpicas: a relação entre o acontecimento (Jogos Olímpicos, neste caso representados pela figuração desportiva do esquiador) e a cultura da cidade ou do país onde os Jogos têm lugar (neste caso, a bandeira nacional francesa).

Apesar de ter aprovado o desenho original que lhe foi apresentado com o intuito de vir a servir de elemento simbólico dos Jogos de Inverno de Grenoble de 1968, o comité organizador desses Jogos não reconheceu a figura concebida por Aline Lafargue como mascote oficial do certame. Nem tal conceito existia à época, fosse na Carta Olímpica fosse na prática das edições anteriores. Mas, mesmo sem carácter oficial, «Schuss» não deixou de marcar presença na cerimónia de abertura dos Jogos de Grenoble, no dia 6 de Fevereiro de 1968, quando, pouco depois da proclamação de abertura pelo Presidente Charles de Gaulle, helicópteros da Força Aérea Francesa lançaram sobre o estádio centenas de lembranças largadas de pára-quedas, entre as quais alguns exemplares de bonecos insufláveis com cerca de metro e meio de altura (do mesmo material das vulgares bolas de praia) representando a figura do esquiador tricolor.

A mascote podia não ser oficial mas tinha conseguido entrar na cerimónia mais formal do protocolo olímpico, codificada por uma estruturação rigidamente formulada, sem espaço para improvisos. É difícil imaginar que qualquer ente sem estatuto oficial pudesse fazer parte daquele momento. Mas, oficial ou oficioso, «Schuss» foi a primeira mascote olímpica, faz agora 50 anos.

Só quatro anos depois, nos Jogos Olímpicos de Verão realizados em Munique (1972), as mascotes já surgiam com reconhecimento formal do COI, explicitado mesmo na Carta Olímpica, que passou a prever a existência destes novos símbolos dos Jogos Olímpicos. «Waldi», a mascote de Munique, era um cão de raça Teckel (ou Dachshund), evocando por isso o estado da Baviera, de que Munique era a capital e de onde a raça era originária.

Em 1980, o urso «Misha» assumia-se como representação da Rússia soviética, a que se juntou um cinto com as cores e os anéis olímpicos. O pequeno «Misha» (na verdade, representava uma cria de urso), que inclusivamente tinha um nome completo à maneira dos humanos («Mikhail Potapitch Toptygin»), ficaria até hoje como a mascote mais fortemente arreigada na memória popular.

Passados 14 anos, os Jogos de Inverno de Lillehammer (Noruega) apresentaram aquelas que são até à actualidade as únicas mascotes olímpicas com referente humano, «Håkon» e «Kristin», evocativas de personagens da história medieval norueguesa, príncipes heróis do século XIII com existência real.

Envergando chapéu e lenço de cowboy, «Hidy» e «Howdy» estabeleceram nos Jogos de Inverno de 1988, em Calgary, a ligação entre a celebração olímpica e a tradição local dos rodeos, assumindo a forma de ursos polares, remetendo de forma clara para um animal associado ao país (Canadá) e ao frio.

A tendência para adoptar mascotes representativas da cultura local ou nacional pareceu de repente interrompida com os Jogos de Sóchi, em 2014. Foi por decisão dos telespectadores durante um programa televisivo que, entre dez propostas finalistas, foram escolhidos um leopardo-das-neves, um urso polar e uma lebre para simbolizar os Jogos que marcavam o regresso da festa olímpica a solo russo, 34 anos depois de Moscovo-1980. Votação nacional via SMS e por telefone, nenhum dos três animais eleitos para representar os Jogos Olímpicos de Sóchi aparentava qualquer relação particular com a história ou a cultura da Rússia ou da região onde os Jogos iriam ter lugar. Tal facto levantou a questão de saber se a massificação do processo de escolha das mascotes através da participação possibilitada pelos meios digitais é a melhor forma de dar continuidade à tradição de assegurar uma relação de identidade entre os Jogos Olímpicos e a cultura local. Ainda para mais, além de não terem relação com o local, as mascotes de Sóchi são também as únicas a não apresentar nome próprio, sendo conhecidas apenas pela designação das espécies animais que serviram de inspiração aos respectivos criadores.

Mas a tradição foi retomada quando, para os Jogos de Verão do Rio de Janeiro de 2016, «Vinicius» foi a imagem de um Brasil representado pela fauna e pela flora amazónica, a que se associava a marca cultural da alegria do carnaval e do samba, numa ligação expressa ainda pelo nome escolhido para o boneco, a evocar o poeta e compositor Vinicius de Moraes.

«Soohorang» é agora a mascote dos Jogos de Pyeongchang. Na forma, trata-se de uma representação de um tigre-branco, animal com forte presença na cultura coreana, entendido como o guardião do país, inspirando o sentimento de segurança e proteção. O nome da mascote reflecte essa relação de confiança, combinando «soo» (proteção) com «ho-rang» (tigre), sendo inspirado ainda numa canção tradicional da região a que pertence a cidade-sede destes Jogos. Portanto, «Soohorang» dá continuidade à tradição ancestral da mascote como portador de boa sorte, função que neste caso é assumida na forma de proteção oferecida aos atletas e aos espectadores. Uma tradição que se mantém e que, no domínio olímpico, foi iniciada há precisamente 50 anos.

Carlos Gomes, membro da AOP

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