Notícia  /  16.08.2018

Na opinião de Aníbal Justiniano

Da Trégua Sagrada à Trégua Olímpica

Os princípios que estão implícitos nos Jogos Olímpicos afastam-se das suas origens?

Recuemos no tempo e vamos até à Grécia do século VIII a.C.  

A Educação tinha um âmbito mais largo. Implicava a formação do homem total e não podia ser dividida em educação física e mental porque, para os antigos gregos, o espírito não podia existir sem o corpo e o corpo não tinha significado sem o espírito. O homem era a imagem viva dos deuses, a sua forma ideal.1

Embora organizados em «cidades-estados», independentes, com regras e re­gulamentos próprios, tinham dois pon­tos comuns: a língua e a religião. 

A comunidade acreditava no bom comporta­mento por razões de or­dem so­cial, rela­cionadas com a família e o bom nome de cada pessoa.

Em honra de Apolo, realizavam-se de qua­tro em quatro anos na Fócida, no Santuário de Delfos, os Jogos Pítios. Os Jo­gos Nemeus, em honra de Zeus, ocorriam de dois em dois anos em Nemeia, na Arcádia. Na Primavera se­guinte aos Jogos Nemeus, segundo Plutarco, na extremidade oriental do Istmo de Co­rinto, realizavam-se os Jogos Istmícos, no santuário que Teseu teria man­dado cons­truir em honra de Poséidon e que se repe­tiam, também, de dois em dois anos.2

Era, contudo, em Olímpia, situada na parte ocidental do Peloponeso, na Acaia, no sopé do monte Cronos, que quadrienalmente ocorriam os Jogos Olím­picos, em honra de Zeus.

Olímpia, santuário e oráculo de Zeus, segundo Lísias, é o lugar mais belo da Grécia.3 Ocupa, na história helénica, um lugar privi­legiado pela impor­tância das suas celebrações, pela magnificência das suas construções e ainda pela expressão pú­blica da cultura grega.

Os Jogos Olímpicos eram anunciados pelos spondophoroi, cidadãos de Élis coroados de ramos de oliveira que, levando na mão um bastão de arauto, per­corriam todo o Peloponeso, anunciando a realização dos Jogos em honra de Zeus.

A fama dos Jogos de Olímpia atraía os representantes de todas as polis ou cidades-estados. Eram grandes deslocações feitas a cavalo ou a pé, por caminhos agrestes e difíceis. Os atletas tinham que viajar cerca de dois me­ses antes, para tratarem dos seus alojamentos e poderem treinar durante um mês, sob a supervisão dos treinadores; além disso, tinham de regressar às suas cidades.

Com eles deslocavam-se parentes e outros cidadãos de várias cidades-estados atraídos pela fama dos Jogos em honra de Zeus, num território onde, permanentemente, havia hostilidades.

 

A Trégua Sagrada

Havia o risco, para todos os viajantes, de possíveis agressões, roubos e até de serem aprisionados. Aquele risco foi ultrapassado ao ser celebrado um acordo por iniciativa de Ífito, rei de Élida.

Pausânias, no ano 160 d.C., faz referência ao disco de Ífito. Se­gundo aquele, no ano de 884 a.C., o território de Olímpia tornou-se invio­lável.

Nesse ano, Ífito, rei de Élida, Licurgo, célebre legislador, em nome de Esparta, e Cleóstenes, de Pisa, celebraram uma Trégua Sagrada, ou Ekechei­ria, respeitada por todos os gregos.4

Nos termos deste acordo, no período que precedia os Jogos, na­quele em que estes decorriam e ainda após os Jogos, todos tinham preservada a sua integridade física, garantida pela Ekecheiria, que determinava a todos os gregos uma quebra nas hostilidades ou armistício, a proibição de gente ar­mada na área da Élida, bem como a aplicação de sentença de morte.5

Os termos da Trégua Sagrada foram gravados num disco que foi colocado no tem­plo de Hera, onde, segundo Pausânias, permaneceu até 160 d.C.

Esta Trégua Sagrada, anunciada pelos spondophoroi, deu ao Santuário de Olímpia uma situa­ção privi­legiada e de tão alto signifi­cado que transformou Olím­pia num pólo de atracção todo o mundo grego.

A partir do século VI a.C., o número de atletas aumenta continua­mente, as­sim como o de visitantes de todas as cidades gregas da Ásia Me­nor, da Si­cília e do Norte de África.

No século V a.C., Olímpia atinge o seu apogeu.

As Guerras Médicas incutem um sentimento nacional perante o perigo que os Per­sas representavam para o mundo helénico. Este perigo comum agrupa os gre­gos e Olímpia converte-se no símbolo da unidade nacional grega.6

A força desta Trégua Sagrada acompanhou os Jogos Olímpicos da Antigui­dade até ao seu desaparecimento, em 393 d.C.

Contudo, ela foi violada em 420 a.C., quando o exército de Esparta invadiu a Élida e conquistou duas cidades, Lepreon e Phyrkon, alegando desconhe­cer o anúncio da trégua. Esparta foi condenada e obri­gada a devolver as suas conquistas e proibida de participar nos Jogos dessa olimpíada.

 

A Trégua Olimpica

Em 23 de Junho de 1894, em Paris, na Aula Magna da Universidade da Sor­bonne, Pierre de Frédy, barão de Coubertin, viu coroado o trabalho in­cansável que vinha a desenvolver desde 1887: o restabelecimento dos Jo­gos Olímpicos.

Desde que, em Atenas, em 6 de Abril de 1896, se inauguram os primeiros Jogos Olím­picos da Era Moderna, o prestígio dos Jogos Olímpicos cresceu.

Robert Babinter, então membro da Comis­são de Ética do COI, traduziu bem este crescimento, ao afirmar, em Dezembro de 1999, durante o 101.º Congresso Olímpico:

«Cada quatro anos, durante algumas semanas, o planeta Terra vive e res­pira Jogos Olímpicos. Se existe uma celebração mundial, nestes dias de globaliza­ção, é a dos Jogos Olímpicos.»7

A que se deve este crescimento, quase exponencial?

O indesmentível êxito do espectáculo desportivo dos Jogos Olím­picos re­sulta da combinação de duas forças:

- a expressão da linguagem corporal, em que as formas desportivas e as regras são mundialmente conhecidas;

- a do extraordinário desenvolvimento das comunicações por rádio, pela im­prensa es­crita e, sobretudo, pela televisão.

Hoje, os Jogos Olímpicos são observados directamente por alguns milhares de espec­tadores entusiasmados e, indirectamente, por vários milhões em cada con­tinente.

Os Jogos Olímpicos tornaram-se, deste modo, um verdadeiro fenómeno social, motor de coopera­ção inter­nacional e de entendimento entre os po­vos.

Contudo, não estão isentos dos mesmos antagonismos sociais e culturais, existentes na sociedade em que vivemos.

Ignorar que os Jogos Olímpicos não foram ou que não são aproveitados politicamente é esquecer os tempos em que vivemos. Por isso, a Carta Olímpica, como elemento regulador, define nos seus Príncipios Funda­mentais a orientação de todo o Movimento Olímpico.8 

O 2.º Princípio Fundamental aponta: «A finalidade do Olimpismo é colocar o Desporto ao serviço do desenvolvimento harmo­nioso da Humanidade, com o objectivo de promover uma sociedade pací­fica, tendo em vista a pre­servação da dignidade humana.»9

O Movimento Olímpico tem como sustentáculo a inexistência de precon­ceitos raciais, respeitando a independência e orientação sexual, a língua de cada povo, a religião, a opinião política de cada um, a origem social ou nacio­nal, a propriedade, o nascimento ou outros status, expressos no 7.º Princí­pio Fundamental daquela Carta.

Assim se entende que o CIO, na defesa intransigente destes princípios, in­terviesse, em 1968, impedindo a participação da África do Sul e da Rodésia nos Jogos Olímpicos do México e excluindo-as do Movimento Olímpico, por causa do apartheid.

Exemplos de aproveitamento político, ainda que por motivos diferentes, foi o ataque de um grupo de terroristas palestinianos à delegação israelita, em 1972, em Munique, matando dirigentes e atletas daquela delegação, os boi­cotes aos Jogos Olímpicos de Montreal, em 1976, efectuada pela Orga­niza­ção da Unidade Africana, como arma de arremesso político, para chamar a atenção para os problemas existentes em alguns países africanos. Em 1980, nos Jogos Olímpicos de Moscovo, cerca de 40 por cento dos comités nacionais olímpicos (CNO) não participaram nos Jogos, apoiando a posição política dos Estados Unidos da América!!

As palavras de Lord Kilanin «Os Jogos Olímpicos devem ser utilizados não para dividir o mundo, mas para uni-lo» não tiveram eco, nem tampouco as censuras da Comissão de Atletas do CIO, em Novembro de 1983, repudi­ando a intromissão do poder político de qualquer nação no Movimento Olímpico.

De facto, em 1984, em Los Angeles, apenas estiveram presentes 140 países e ausentes 19 CNO, apoiantes do chamado Bloco de Leste, liderado pela URSS, com excepção da Roménia, que se recusou a integrar o grupo dos que boicotaram os Jogos Olím­picos.

Estas atitudes de boicote atingiram sobretudo os atletas que, por aqueles motivos, não participaram na maior festa mundial do Desporto.

Em 1988, quando dos Jogos Olímpicos de Seul, o CIO não conseguiu vencer a resistência do go­verno da República Popular Democrática da Coreia (do Norte), tendo contudo parti­cipado a U.R.S.S. e a Repúlica Popular da China.

Não é de estranhar que Juan Antonio Samaranch, então presidente do CIO,  tenha afirmado, perante aqueles boicotes: «Os Jogos Olímpicos não perten­cem nem às federações internacionais, nem aos comités olímpicos naci­onais, nem tampouco ao Comité Internacional Olímpico, nem mesmo ao Movimento Olímpico, mas à Humanidade inteira!»10

Ainda que em tempos diferentes, era este o pensamento de Pierre de Cou­bertin no seu trabalho insano de, através da realização dos Jogos Olímpi­cos, estabelecer uma ponte de união de Paz e Amizade entre todos os Povos do Mundo. 

«Os Jogos Olímpicos simbolizam a amizade e a fraternidade entre os membros da raça humana», afirmou Badinter.

Teriam acabado os boicotes, após aqueles anos?

Juan Antonio Samaranch estava ciente, pela sua vivência como embaixador de Espanha em alguns países europeus, de que o quadro político que se dese­nhava no mundo poderia ser aproveitado para uma maior aproximação do CIO às organizações europeias e mundiais responsáveis pelo controlo e pela vi­gilância das nações.

Em 21 de Julho de 1992, na 99.ª Sessão do CIO, em Barcelona, é lançado um apelo para uma Trégua Olímpica, que, tal como na Grécia antiga, per­mitisse cessar as hostilidades entre os países de todo o mundo para  que  nos Jogos Olímpicos pudessem estar todos os CNO representados!

Em 9 de Fevereiro de 1993, o presidente do CIO encontra-se, em Nova Iorque,  com o secretário-geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, e apresenta-lle um documento do CIO intitulado Trégua Olímpica.

Surge, nessa mesma reunião, a ideia conjunta de ser presente, na 48.ª As­sembleia Geral das Nações Unidas, não só este documento sobre uma  Tré­gua Olímpica mas também uma proposta em que, atendendo a que no ano de 1994 se cumpria o centenário da criação do Comité Internacional Olím­pico, este fosse considerado Ano Internacional do Desporto e do Olim­pismo.

Após diligências variadas, em 25 de Outubro de 1993, a Assembleia Geral das Nações Unidas adopta, por consenso, duas resoluções:11

- (A/RES/48/10) – Ano de 1994, Ano Internacional do Desporto e do Ideal Olímpico;

- (A/RES/48/11) – Respeito pela Trégua Olímpica.

Competia agora ao CIO desenvolver junto dos CNO a implementação desta Resolução 48/11 pelas nações a que pertenciam, num período em que decorriam as lutas independentistas na ex-Jugoslávia e noutras partes da Europa, de África e da Ásia.

Em 7 de Dezembro de 1994, na 49.ª Sessão da Assembleia Geral das Na­ções Unidas, era adoptada por unanimidade um resolução intitulada «Para a edificação dum mundo pacífico e melhor graças ao Desporto e ao Ideal Olímpico».12

Apesar desta resolução da ONU, nos Jogos Olímpicos de Atlanta foi colo­cado um engenho explosivo de fabrico artesanal, no Parque Olímpico, pro­vocando a morte de dois visitantes e 110 feridos, um dos quais em estado crítico. Mas os Jogos prosseguiram, após um comunicado conjunto do Pre­sidente dos E.U.A., Bill Clinton, e do presidente do CIO, assegurando a vi­gilância e a protecção a todos os assistentes e participantes.13

Desde esta infeliz infracção à Trégua Olímpica que esta tem sido respei­tada. Graças aos esforços do CIO tem havido uma maior aproximação dos diferentes países, mesmo aqueles que estavam de costas voltadas. É exemplo disto o que se passou recentemente com os governos das duas Coreias aproximando-os para poderem estar representados pelos seus CNO nos últimos Jogos Olímpicos de Inverno.

Diremos que Pierre de Coubertin vê ser atingido o fim para que criara os Jogos Olímpicos, uma união fraterna estabelecida no mundo, através da propagação do Desporto, com meio educativo de toda a Humanidade.

 

Bibliografia

1 - Andronicos M., «The Olympic Games in Ancient Greece»,1982:8-9, Ed. Athenon, S.A.

2 - Panaiotou N. D., «Olympie, Mycenes, Epidauro, Corinthe», Ed. Vision.

3 - Badinou P., «Olympiaka- Anthologie des sources grecques», CIO.

4- Durántez C., «Los Juegos de Olimpia», 2009:13-9, Comité Olímpico Español, 1991.

5 - Yalouris N., «The Olympic Games in Ancient Greece – The Organisation of the Games», 1982:104-13, Ed. Athenon, S.A.

6 - Pirenne J., »Historia Universal - Las grandes corrientes de la Historia». Ed. Exito, S.A., Barcelona, 1967, Vol. I: 136-144.

7 - Badinter R., «The Etical Dimension», 1999-2000; Suppl. Revue Olympique, XXVI: 8-9.

8 - «Le Comité International Olym­pique».  Lausanne, 1981, CIO.

9 - Comité International Olympique, «Charte Olympique». Lausanne, 2017.

10 - Samaranch, J.A., «Allocution du Président du CIO lors de la Réunion de la Comission Exécutive et des CNO, México», Revue Olympique, 1984, 206:963-4.

11 – CIO, Revue Olympique, 1993, 313:477-9.

12– CIO, «Les Nations Unies et le CIO», Revue Olympique, 1995, XXV-1:13-21.

13 – Barbé S., «Attentat au parc olympique», L’Équipe – Les Jeux Olym­piques, 2003, Vol. II, 488.

 

Aníbal Justiniano é médico, licenciado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Foi chefe de serviço do quadro de Cirurgia Geral do Hospital de S. João (Porto, 1980-2001), assistente da Faculdade Medicina do Porto (1967-1999), professor auxiliar do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa e professor convidado da Escola Superior de Enfermagem de Santa Maria (Porto, 1978-2013). É membro fundador da Associação Portuguesa de Tratamento de Feridas. Foi atleta internacional de andebol de 11. Em 1962 integrou a primeira delegação portuguesa às sessões para jovens da Academia Olímpica Internacional (Olímpia, Grécia). É o membro n.º 1 da AOP, tendo sido seu deão entre 1990 e 2001. Recebeu a Medalha de Mérito Desportivo do Governo Português (1991), o Diploma de Mérito do Comité Olímpico Internacional (2001), a Medalha de Honra ao Mérito Desportivo do Governo Português (2011). É membro de honra da Associação Pan-ibérica de Academias Olímpicas Desde 2002), da Ordem do Médicos (desde 2006) e do Comité Internacional Pierre de Coubertin (desde 2014).


 


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