Notícia  /  30.05.2019

Na opinião de André Fernandes da Cunha

Esqueleto ou meio-tubo? Eu quero ir…

Para todos os atletas, participar nos Jogos Olímpicos é um momento marcante na carreira desportiva, mesmo nas – escassas – modalidades em que este evento não é a mais importante competição mundial. E, provavelmente, a maioria das pessoas não desdenharia ter na sua experiência de vida uma participação olímpica, mesmo que o seu desempenho não fosse brilhante. Porque será?

Os Jogos Olímpicos da era moderna recuperaram várias características do evento original da antiguidade e rodearam-se, quase desde o seu início, de uma aura especial, com relevância simbólica, competitiva e mediática reconhecida pela generalidade dos países e das pessoas. Esta importância universal é reforçada pela insistência discursiva do Movimento Olímpico na ética inerente aos seus princípios.

Se o próprio desporto se define pela ética, pois os adversários só aceitam competir com regras acordadas e respeitadas, o desporto olímpico avoca a sublimação dessa ética, ou seja, assume-se como um espaço de honorabilidade elevada. É discutível se assim será, mas a exclusão da Rússia dos Jogos Olímpicos de inverno de 2018, por dopagem institucionalizada, sublinha essa aspiração de pureza. A procura da dignidade conferida pela aura olímpica é notória; atente-se ao uso da designação ‘Olimpíadas’ em concursos de disciplinas escolares, como as Olimpíadas da Matemática ou da Biologia.

Quando a procura de um bem é muito elevada e a oferta se mantém algo restrita, o seu valor tende a subir. A ética não é um bem escasso, mas o certificado mediático do seu reconhecimento público sê-lo-á, aparentemente. Os atletas olímpicos adquirem, assim, esse bem simbólico e durável.

Por vezes, “ir aos Jogos” é o único objetivo dos participantes. Os nadadores Eric Moussambani, da Guiné Equatorial (em Sidney 2000), e Robel Kiros Habte, da Etiópia (no Rio 2016), estiveram lá, apesar das enormes limitações técnicas. A equipa de bobsleigh jamaicana em Calgary 1988 marcou esses Jogos Olímpicos de inverno, pelos mesmos motivos.

Este ano, na Coreia do Sul, a participação de Kequyen Lam por Portugal, no esqui de fundo, sublinhou esta ideia, pois – com outros três esquiadores (de Marrocos, da Colômbia e do Tonga) – esperaram pelo último participante, mexicano, para terminar a prova.

No entanto, em Pyeongchang 2018, quem atraiu mais atenções foi a americana Elizabeth Swaney, que participou pela Hungria em esqui halfpipe (‘meio-tubo’, numa tradução obviamente literal), depois de ter tentado representar a Venezuela em skeleton (‘esqueleto’, também numa tradução literal). Ganharia quem fizesse as melhores manobras, mas o sucesso desta esquiadora foi garantido ao não cair. Aliás, esta estratégia garantiu-lhe a soma dos pontos mínimos nas provas da Taça do Mundo em que participou, condição para “ir aos Jogos” como única representante da Hungria na especialidade. Alguma escassez de esquiadoras nessas competições de apuramento terá potenciado o efeito positivo da acumulação de “pontos de participação por não cair”.

Numa conclusão bem-humorada, poder-se-á dizer que para “ir aos Jogos”, em esqueleto ou meio-tubo, convirá saber fazer contas, tal qual nas Olimpíadas da Matemática.


Texto originalmente publicado no número 8 da revista «Martímo» (abril/2018) e galardoado com o 2.º Prémio da categoria «Imprensa Desportiva e/ou Imprensa Generalista» do Prémio de Imprensa «Desporto com Ética/2018», promovido pelo Instituto Português do Desporto e Juventude no âmbito do Plano Nacional de Ética no Desporto, em parceria com o Clube Nacional de Imprensa Desportiva – Associação dos Jornalistas de Desporto. A AOP agradece ao Club Sport Martímo a autorização para a republicação do artigo.

André Fernandes da Cunha, técnico superior na Secretaria Regional de Educação da Madeira, é licenciado em Educação Física e Desporto pela Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa e mestre em Ensino da Educação Física pela mesma faculdade. Atualmente, exerce funções nas áreas de comunicação, conteúdos, eventos e proteção de dados. Foi editor e gestor de documentação e informação do Centro de Estudos e Formação Desportiva e do Instituto do Desporto de Portugal. Membro da Academia Olímpica de Portugal desde 2003, foi colaborador da AOP na produção da revista «Academia» e autor de escritos em diferentes periódicos. Foi jogador universitário de râguebi e é, atualmente, praticante federado de bodysurf, tendo sido treinador de basquetebol, râguebi e desportos de aventura.

Foto: Arlindo Homem


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